segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Autoria da obra político-filosófica Vindiciae Contra Tyrannos - 2005

A autoria das Vindiciae Contra Tyrannos
Frank Viana Carvalho

Resumo:
Desde a publicação das Vindiciae Contra Tyrannos, em 1579, muitas hipóteses têm sido levantadas na formulação das pesquisas a respeito de sua autoria. Algumas teorias sobre quem foi Stephanus Junius Brutus foram elaboradas, apontando como autor ou autores, nomes significativos ou obscuros do final do século XVI. Ainda hoje, no início do século XXI não se pode afirmar, com absoluta tranqüilidade, quem foi o autor do livro. Contudo, novas pesquisas recentemente realizadas apontam numa única direção. Talvez seja o encerramento de uma longa pesquisa que buscou resolver um dos grandes enigmas dos escritos de filosofia política do século XVI. Para uma maior compreensão do assunto, nossa pesquisa irá buscar de maneira sistemática, apresentar as evidências que apontam especialmente para dois nomes e finalmente para um único nome entre os dois. Estas evidências permitem-nos afirmar que dificilmente outro escritor reuniria as características necessárias para ser o autor desta significativa obra. Embora a questão da autoria seja secundária em função do significado das Vindiciae, é de fato importante ter em mente quem foi o autor para melhor compreender o seu conteúdo.

Abstract:
Since the publication of Vindiciae Contra Tyrannos, in 1579, many hypotheses have been raised in the formulation of research about its authorship. Some theories about who was Stephanus Junius Brutus were prepared, pointing as an author or authors, significant obscure names of the end of the sixteenth century. Even today, at the beginning of the twenty-first century we can not say with absolute tranquility, who was the author of the book. However, new research conducted recently pointed in a single direction. Maybe the closure of a long search that sought solve one of the great puzzles of the writings of political philosophy of the sixteenth century.
For a better understanding of the subject, our research will seek in a systematic way, presenting the evidence that pointed specifically to two names and finally to a single name between the two. Such evidence allow us to say that another writer hardly meet the characteristics to be the author of this significant work. Although the question of authorship is a secondary function of the meaning of Vindiciae, is important to bear in mind who the author was to better understand their content.




A Importância de se saber quem escreveu as Vindiciae


Ainda no século XVI, a identidade de Stephanus Junius Brutus era objeto de vivos debates. Henri III, que reinou entre 1574 e 1589, sempre se mostrou desejoso de conhecer a identidade do autor. Considerando-se que a obra foi publicada durante seu governo e que a temática do livro se liga diretamente à Coroa, compreende-se bem a curiosidade real. Quem seria a pessoa que conseguiu com maestria propor uma bem fundamentada teoria contratual na qual o rei estava sujeito à lei como os demais? Qual a pessoa tinha tido a coragem de firmar que o povo era mais poderoso que o rei[1] e que os magistrados são servidores do reino e não do rei? E mais, nessa mesma proposta, os súditos tinham o direito, e até mesmo o dever de resistir a um rei tirano.
Apontavam-se vários nomes: Théodore de Bèze, o líder protestante, amigo particular de Calvino, autor de vasta obra de caráter teológico e político, interlocutor do cardeal de Lorena no Colóquio de Poissy[2]; François Hotman, autor da Franco-Gallia, historiador e jurista; o jesuíta Robert Parsons, professor em Oxford e defensor dos católicos ingleses contra as perseguições dos protestantes. A atribuição a Parsons (1547-1615) parece um tanto fora de propósito. Serve, entretanto, para destacar a complexidade das posições políticas e religiosas no século XVI. Não é pelo fato de ser ele católico e jesuíta que a atribuição é invalidada, pois tanto católicos como protestantes foram levados, em seus países, a defender idéias que em outras partes eram exatamente as defendidas pelo grupo oposto. Lembremos ainda que os católicos eram, na Inglaterra dos fins do século XVI, aquilo que os protestantes eram na França: minoria perseguida ou reivindicante. As afirmações do livro, sua contextualização histórica e a análise textual, porém, invalidam a hipótese Parsons.
Assim, ainda não muito tempo depois da publicação, várias dessas atribuições foram sendo relegadas a um segundo plano, e mesmo descartadas, diante de novas e mais procedentes versões da questão da autoria. Mosca e Bouthoul afirmam:

Qualquer que seja o nome do autor é evidente que se tratava de um protestante francês, extremamente familiarizado com a Bíblia, pois, apoiando-se em argumentos tirados, na sua maior parte do Velho Testamento, é que ele sustenta (...) as suas constituições políticas. (MOSCA e BOUTHOUL, 1955, p. 142).

Dessa forma, dois protestantes que estavam em Paris na noite do massacre da Saint-Barthélemy e que conseguiram escapar foram apontados ao longo dos últimos séculos como os prováveis autores, embora hoje se tenha maior segurança em torno de um dos nomes. Vamos aprofundar a pesquisa sobre eles e verificar por que um deles ou mesmo ambos são apontados como o autor Stephanus Junius Brutus. Estamos nos referindo a Philippe Du Plessis-Mornay e a Hubert Languet. Há evidentes semelhanças não apenas entre o status social de ambos, como também em relação aos papéis por ambos desempenhados nas lutas político-religiosas do século XVI. Ambos eram da nobreza, filhos de famílias da aristocracia da Borgonha e do Poitou, respectivamente, e pertenciam os dois àquele grupo que tão frontalmente participou das guerras de religião. Estavam em Paris na noite da Saint-Barthélemy e conseguiram escapar com muita dificuldade. Eles também tiveram uma significativa atuação literária, “pois ambos emprestaram a pena à causa do partido político-religioso ao qual pertenciam, compondo os libelos, manifestos, discursos, panfletos e cartas que os tornaram conhecidos em toda a Europa”. (CASTRO, 1960, p. 81). Escritos nos quais a defesa apaixonada dos direitos da minoria huguenote vai lado a lado com eruditas afirmações teológicas, com especulação filosóficas e políticas.
Finalmente, todos esses traços comuns se enlaçavam em sólida amizade, que as peripécias da fuga em 1572, os encontros em Londres e Anvers incrementaram e fortaleceram. Nobres e líderes huguenotes, Philippe e Hubert são dignos representantes de seu grupo. Mesmo status social, mesmo engajamento ao partido reformista, mesmas preocupações de natureza político-religiosa, motivadas pelas mesmas frustrações do grupo decadente ao qual pertenciam, pelos aviltamentos, pelas humilhações que o crescente poderio da monarquia lhes impunha. Mais que isso, são ambos porta-vozes da nobreza protestante, encarregados, voluntariamente ou não, conscientemente ou não, de exprimir o pensamento, a ideologia de seu grupo.


Hipótese Du Plessis-Mornay


A hipótese Du Plessis-Mornay será ardorosamente defendida pela maioria dos autores e pesquisadores do tema. Desde as últimas décadas do século XVI, embora François Hotman fosse tido como o suposto autor, já havia uma tendência em se apontar o ‘papa dos huguenotes’ como quem de fato havia escrito as Vindiciae. Seu conhecimento bíblico, sua cultura geral, sua atuação como diplomata e o teor de suas outras obras pareciam indicar a muitos que ele era o autor da conhecida e infame obra. Mas, de maneira bastante evidente, em um comportamento compartilhado por outros monarcômacos, manter-se anônimo era garantia de vida para Mornay. Ainda mais ele, colaborador direto e braço direito de Henri de Navarre desde 1576 até a promulgação do Edito de Nantes em 1598. Mornay só irá falecer em 1623, mais de dez anos após a morte de Navarre. Em sendo o autor, parece-nos óbvio que ele nunca se revelasse: os monarcômacos, fossem eles protestantes ou católicos, eram odiados pelos monarcas.
A argumentação básica em favor de sua autoria será tremendamente fortalecida por dois depoimentos de contemporâneos dele, afirmando ser Du Plessis-Mornay o autor. Na primeira edição do Histoire Universelle, Agrippa D'Aubigné escreveu “que François Hotman era por muito tempo injustamente tido como responsável pela autoria das Vindiciae, mas desde então um ‘cavalheiro’ francês, vivendo enquanto eu escrevo, declarou a mim que ele é o autor [das Vindiciae]”. Vivo naqueles dias - só podia ser Mornay – (Hotman e Languet já haviam falecido há muitos anos). D’Aubigné repetiu a afirmação ponto por ponto na segunda edição, publicada dois anos depois, quando deu detalhes do que ele pensava ser uma publicação de 1573: “as Vindiciae foram feitas por um dos cavalheiros instruídos do reino, renomado por muitos livros excelentes, e ainda vivendo hoje com autoridade...”.
Outro depoimento, que somente será descoberto bem mais tarde, no início do século XIX, reforçará muitíssimo a hipótese Du Plessis-Mornay. Charlotte Arbaleste Mornay narra em suas memórias que, durante uma estada em Jametz, entre o começo de março e o fim de maio de 1574, seu esposo “fez um livro em latim intitulado De la Puissance legitime d’un Prince sur son peuple, o qual foi impresso e divulgado, sem, entretanto, que muitos o tivessem como autor”.[3] É quase esse o título da edição francesa de 1581 das Vindiciae. Demais, não há qualquer outro escrito de Mornay sobre o assunto, ao qual pudesse referir-se sua esposa.
Essa afirmação é confirmada por outra, do primeiro secretário da Academia Francesa, Valentin Conrart[4] que, também em suas memórias, narra que o secretário particular de Mornay, Jean Daillé, conta que seu patrão possuía em seu castelo de Saumur um pequeno gabinete onde guardava apenas os livros de sua própria autoria, ricamente encadernados. Entre eles figuravam as Vindiciae. Narra ainda que Mornay o havia instruído para retirar e esconder a obra sempre que algum visitante mais curioso mostrasse interesse em conhecer o famoso gabinete. (GARNETT, 1994, p. 1viii). Mornay, já em idade avançada, mantinha o tratado rodeado de mistério:

Qualquer um que pergunte a M. Daillé se M. Du Plessis-Mornay (...) seria o autor daquele livro intitulado Junius Brutus, ele responderia: - Esta é uma pergunta que eu jamais ousaria fazer a Monsieur Du Plessis, porque esta me parece muito delicada; mas eu vos diria que Monsieur Du Plessis, numa parte da galeria em que estão seus livros, dentro do castelo de Saumur, tem um pequeno escritório dentro dele, onde estão suas produções ou composições, bem encadernadas e mesmo a maior parte impressa em pergaminho fino. No meio deste livros, ele tem ainda um exemplar de Junius Brutus, aquele que M. Du Plessis me faz tirar toda vez que qualquer pessoa de qualidade duvidosa entra neste pequeno escritório. Ele me deu a chave e disse que eu falasse antes de abrir a porta, ajuntando tudo embaixo ou me fizesse um sinal para que tirasse o livro de Junius Brutus, o que eu fazia; porque M. Du Plessis sabia muito bem que este livro não tinha a aprovação de todo o mundo e deveria evitar as ocasiões de falar sobre ele. (YSSELSTEYN, 1931, p. 55, 56).

A esses depoimentos acrescente-se que Mornay, por seus amplos conhecimentos de história, teologia e direito, mais que evidenciados em outros escritos, estava perfeitamente apto a ser o autor das Vindiciae. Além disso, a argumentação bíblica usada em profusão na obra era um dos fortes do “papa dos huguenotes”, ao contrário de Hubert Languet, que em seus escritos não usa as Escrituras. Albert Elkan, que realizou uma extensa e significativa pesquisa, atribui a autoria das Vindiciae definitivamente a Philippe Du Plessis-Mornay. O livro de Albert Elkan, Die Publizistik der Bartholomäus-Naucht und Mornay’s Vindiciae contra Tyrannos, dá um resumo detalhado dessa questão da autoria, que ali aparece como questão já resolvida. (ELKAN, 1931). Harold Laski (1924) sustentará com energia a tese da autoria de Mornay.
Julian Franklin, que em 1969 realizou uma tradução das Vindiciae para o inglês, também defende a hipótese Mornay e o mesmo é feito por Quentin Skinner, que preferiu não adentrar profundamente na pesquisa, baseando-se em Figgis, Franklin e ainda outros mais recentes para convalidar o apoio a Du Plessis-Mornay. (SKINNER, 2000, p. 653).
Resumindo, importantes pesquisadores do tema, ao basearem-se na análise do texto, nos outros escritos do mesmo autor e nos testemunhos da esposa de Mornay e de Conrart decidem-se por Mornay: Thieme, Waddington, Weill, Lossen, Moussiegt, Elkan, Laski, Lecler, Figgis e Franklin.[5]

Hipótese Languet

Ainda na primeira metade do século XVII, quando a atribuição da autoria das Vindiciae a Philippe du Plessis-Mornay era cada vez mais defendida, Agrippa D'Aubigné, numa nova edição do Histoire Universelle, publicada em 1626, portanto, três anos após a morte de Mornay, mudou completamente o seu anterior testemunho.
Ele deixa a primeira parte do texto, mas adiciona as palavras: “Mas se mostrou afinal que ele tinha publicado isto (qu’il lui avoit donné le jour), tendo isto sido confiado a ele por Hubert Languet.” Na segunda passagem a palavra advoué é substituída por fait, e a frase seguinte assim se somou: “Depuis on a sçeu qui en estoit le vrai autheur, sçavoir Hubert Languet.” Assim, ele muda sua tese e passa a indicar Languet como o verdadeiro autor das Vindiciae. Sempre foi assumido, até mesmo pelos que discordam e questionam a autoria de Mornay, que o anônimo “cavalheiro” instruído, a quem d'Aubigné se referia e tinha conhecido desde a mocidade, era Philippe Du Plessis-Mornay. (GARNETT, 1994, p. 1vii).
Em qual fonte D’Aubigné se inspirou para mudar o seu depoimento e dizer que o anônimo “cavalheiro” (Mornay) apenas publicara um livro preparado por Languet? De acordo com o pesquisador Daussy (2002, p. 240), foi um testemunho de Goulart relatado por Tronchin, que levou D’Aubigné a esta declaração. Todavia, o assunto pareceu adormecido até o final do século XVII.
Pierre Bayle em seu Dictionnaire Historique et Critique (1697)[6], reanimou a hipótese levantada por D’Aubigné em favor de Hubert Languet, reacendendo o debate que iria atravessar séculos. A partir daí afastaram-se as demais hipóteses e o problema passou a girar em torno dos dois líderes huguenotes, Mornay e Languet. Para isso Bayle se baseou em um depoimento de Tronchin na oração fúnebre dedicada a Goulart. O documento Oratio Funebris afirma que em 1628 Théodore Tronchin estava preparado para revelar o segredo que Simon Goulart supostamente tinha escondido dos enviados de Henri III:

[Goulart] tinha visto o manuscrito do autor e soube que o trabalho pertencia a Hubert Languet (...), o qual Philippe Mornay tinha dado ao impressor Thomas Guérin para ser impresso, e que ele tinha publicado quando veio às suas mãos depois da morte do autor. Mas [Goulart] guardou esta descoberta, para que a sombra de tal devoto homem fosse preservada de aborrecimento. (Oratio Funebris, por Pierre Aubert, 1628, p. 7 e 8).[7]

A partir de então muitos historiadores e pesquisadores do tema inclinaram-se em favor de Hubert Languet como o autor da famosa obra monarcômaca. Clemy Vautier, partidário da hipótese Languet, acrescenta a esses argumentos alguns outros de crítica interna. O exame do texto das Vindiciae, para ele evidencia que seu autor devia ser homem afeito ao trato da história política da Alemanha, profundo conhecedor das instituições germânicas, mencionadas na obra. E, além disso, algumas concepções políticas de Brutus, notadamente as questões da não hereditariedade da coroa e da organização parafeudal do Estado foram, para Vautier, de inspiração germânica. Pretende, portanto, que Hubert Languet, por suas longas estadas na Alemanha, por seu engajamento com a Corte do Eleitor da Saxe, contaria com melhores elementos do que Mornay para conhecer de perto os problemas germânicos e deixar-se influenciar por eles.[8]
Além do testemunho de Tronchin, outro relato envolvendo novamente Daillé parece contradizer seu relato a Conrart. Paul Colomiés disse que ouviu de Daillé que Hubert Languet era o autor das Vindiciae.[9] E ainda outro testemunho, dessa vez não pelo que diz, mas justamente pelo que não diz, lança dúvidas sobre a hipótese Mornay: David de Licques, na obra Vie de Mornay, editada por Daillé, não faz menção alguma das Vindiciae.


Dificuldades na Hipótese Languet


Observe que a narrativa de Théodore Tronchin, ao mesmo tempo em que traz uma suposta revelação da autoria de Hubert Languet, afirma que Mornay só recebeu o livro para publicação depois da morte de Languet, ocorrida em 1581. Há claramente aqui, no entanto, dois problemas: a data da publicação e a proteção ao nome de quem já estava morto. Pierre Bayle, para favorecer a hipótese Languet, afirmou que houve uma mudança de data de forma intencional pelo editor e que, na verdade, as Vindiciae tinham sido publicadas em 1581 e não em 1579. Mas sobre a data de publicação, o próprio Bayle admite um sério problema:

(...) se puder ser provado que a obra de Junius Brutus foi publicada antes da morte de Languet, daremos adeus a toda o depoimento de Goulart, transmitido por Tronchin. (DAUSSY, 2002, p. 240).

É certo que a fonte de Tronchin para esta história era o próprio Simon Goulart. Sendo Goulart bastante conhecedor dos escritos monarcômacos é de se estranhar que ele tenha cometido um erro tão evidente com relação à data da publicação. E por que ele errou? As Vindiciae foram de fato publicadas em 1579, quase três anos antes da morte de Languet que ocorreu em setembro de 1581. A data de 1579 é determinada na primeira página da obra, e é citada repetidamente na ata dos procedimentos do Congresso de Cologne para a pacificação dos Países Baixos, que aconteceu em setembro de 1579, e que foi publicada no ano seguinte. Este documento (Acta Pacifications Coloniae Habita), resultado desse Congresso foi publicada no começo de 1580 e cita a obra Vindiciae contra Tyrannos. (YSSELSTEYN, 1931, p. 55; GARNETT, 1994, p. 1v). Elkan, que também pesquisou o assunto, estabelece a primeira edição como ocorrendo entre os anos de 1576 e 1579. (ELKAN, 1905, p. 66). Assim, tudo aponta para a correta data de publicação em 1579: o próprio prefácio, a ata de pacificação mencionando o texto das Vindiciae e o referendo dos pesquisadores. Mas há ainda outros problemas na ‘hipótese Languet’.
Pierre Bayle, o principal defensor dessa hipótese, cujas conclusões e certezas influenciaram diversos pesquisadores posteriores, baseou toda a força de sua pesquisa no depoimento de Tronchin. Embora Goulart pudesse estar confundido em anos posteriores sobre a relação precisa entre a data da morte de Languet e o ano da publicação do livro, a implicação da história é que ele guardou em particular este segredo sobre a autoria muito além da data da morte do suposto autor e da publicação do livro. Será que ele julgava que nesta ocasião era muito cedo para divulgá-lo? Esse silêncio continuado de Goulart é também um problema para os que defendem essa hipótese.
Lossen, que foi o primeiro a dedicar atenção séria para verificar se Mornay era o autor buscado, procura demonstrar que a declaração de Tronchin é absurda. É verdade que a declaração de Tronchin só ocorre cinco anos após a morte de Mornay e quarenta e sete anos após a morte de Languet, mas para ele não fazia sentido proteger quem não podia ser protegido – no caso, Languet – pois sua morte havia se dado muito antes.
Somente depois da morte de Mornay é que a hipótese Languet começou a aparecer. Se havia tanta preocupação em proteger Languet, parece que esta foi estendida a Mornay, o qual viveu até 1623. Em defesa dessa possível autoria, há a argumentação de que era suficientemente perigoso para a segurança de Mornay, sendo que ele tinha uma suposta participação, não como autor, mas como encarregado. Porém, essa argumentação é falha - Goulart pretendeu manter o segredo para sempre? Esconder o papel de Mornay como editor e assim proteger a reputação dele enquanto ele vivesse, e até mesmo depois da sua morte? Se queria preservá-lo, por que permitiu a insinuação corrente nas primeiras décadas do século XVII de que Mornay era o autor? Por que não desfez essa dúvida enquanto ele estava vivo?
Se era pretensão de Goulart preservar a reputação do falecido Languet nesta associação com o que rapidamente se tornou um trabalho infame (as Vindiciae), porque Tronchin não diz nada diretamente sobre a atitude de Goulart para com o Mornay vivente? Essas questões mostram quão frágil é o depoimento de Tronchin. Entretanto, isso não significa necessariamente que Languet era inocente de qualquer parte no livro.
A despeito da conclusão ‘segura’ de Bayle em favor de Languet, vale destacar que ele nada sabia sobre os documentos que comprovariam a correta data de publicação e o depoimento de Charlotte Arbaleste, Madame de Mornay – pois as declarações dela só seriam divulgadas no século XIX.

Entre Mornay e Languet


Para Castro (1960), algumas concepções de Junius Brutus evidenciam conhecimento acurado das instituições germânicas. Mas ele não vê “razão para Vautier apresentar isso como argumento a favor de Languet. Philippe Du Plessis-Mornay, por sua cultura, suas viagens – muitas das quais à Alemanha, por suas ligações de amizade e diplomacia com alemães, também estava perfeitamente apto a conhecer em profundidade as instituições germânicas”. (1960, p. 78). Tendo em minhas mãos as Vindiciae e tendo traduzido essa obra e analisado-a cuidadosamente, posso afirmar que não há nela tantas informações sobre um único reino como Vautier supõe para inclinar-se em favor de Languet. Já para Ysselsteyn, os historiadores antigos, em suas “tênues tentativas de qualificar Languet como autor”, se fundamentam na dissertação de Bayle, publicada em 1692, na qual ele atribui esse escrito a Hubert Languet.
Em 1704 Louis Moreri contestou as conclusões de Pierre Bayle e voltou a afirmar que o verdadeiro autor era Philippe de Mornay, havendo Languet colaborado com o prefácio. Alguns anos mais tarde, questionando o depoimento de Théodore Tronchin, Laurent-Josse Leclerc também dará o seu aval a Mornay.[10]
Mas mesmo a publicação das Memórias de Madame Mornay (1824), que atribui a Mornay a honra da paternidade literária das Vindiciae, não parecerá ser ainda suficiente para afastar de alguns pesquisadores a participação de Languet. Richard Treitschke, por exemplo, em 1846 irá retomar os argumentos de Bayle e se pronunciará em favor de Hubert Languet. (NICOLLIER, 1995, p. 400). Barbier, seguindo essa linha, afirma estar sujeita a falhas a biografia de Mornay, escrita pelo secretário Licques, e continuará a considerar Languet como autor. Essa opinião é partilhada por Chevreul, o biógrafo de Languet. (CHEVREUL, 1852, p. 149; YSSELSTEYN, 1931, p. 47; HAUSER e RENAUDET, 1918, p. 153). Além destes, Barker, em 1929, também defenderá a hipótese Languet, mas sem maiores explicações. (p. 164-181).

A Dupla Autoria


Como sempre acontece em questões polêmicas, há aqueles que buscam outras soluções que possam contemplar as evidências de ambos os lados. Para alguns estudiosos, as Vindiciae teriam dupla autoria. Hubert Languet e Philippe Du Plessis-Mornay, velhos amigos e companheiros de jornadas políticas e religiosas, teriam trabalhado em comum acordo para produzir o célebre livro. Quanto à participação de um outro na feitura da obra, as opiniões divergem e a polêmica reacende-se.
O modo de argumentação do prefácio e o estilo rebuscado das Vindiciae, sempre buscando pseudônimos, diferem ligeiramente do estilo das primeiras questões. Há dúvidas se o autor do prefácio foi o mesmo autor das questões:

Há cerca de dois anos atrás,[11] quando conversava com aquele cavalheiro douto e prudente Brutus sobre as misérias da França, depois de termos examinado completamente suas causas e origens, seus inícios e seu desenvolvimento (...) Ele depois enviou-me um livro sobre estas investigações, que compreendem estes princípios, e provados e explicados para que eu mesmo o lesse e desse a minha opinião. Junius Stephanus manifestamente empregou o seu tempo em aperfeiçoar estas investigações com grande esforço e aplicação por amor ao bem público e para manter a religião cristã em bom estado. (Vindiciae contra Tyrannos, p. 8).

Os que advogam a teoria da dupla autoria apontam que o diálogo entre Junius Brutus e Cono Superantius seria o diálogo dos dois supostos autores e não apenas uma estratégia narrativa. Observe que o que esse trecho revela é muito preciso: a) o diálogo entre os dois amigos; b) o tempo no qual isso ocorreu; c) a difícil situação da França analisada (as guerras de religião); d) o livro (ou esboço); e) o pedido de uma opinião; f) a dedicação do autor principal em aperfeiçoar esse material. No entanto, essas mesmas linhas parecem indicar que, se houve colaboração, Cono Superantius recebeu a obra, escreveu o prefácio e o devolveu a Junius Brutus, que foi realmente quem escreveu as Vindiciae. Porém, essas entrelinhas não são julgadas como suficientes para se determinar com exatidão quem foi o autor do prefácio ou mesmo se houve uma dupla autoria para as Vindiciae. Mas, há quem julgue que no texto mesmo das Vindiciae existem elementos que indicam a presença de mais de um autor.
No início da obra é apresentada a data de 1º de janeiro de 1577. Isso leva o diálogo entre Cono Superantius e Junius Brutus para o início de 1575 ou o final de 1574, pois a expressão utilizada é: ‘há cerca de dois anos atrás’. Esse diálogo dá a entender que Cono Superantius escreveu o prefácio e Junius Brutus o corpo da obra. Cono Superantius também leu o texto, numa espécie de revisão. Esses elementos presentes no texto realmente parecem indicar uma colaboração na composição da obra: um autor principal e um colaborador.
Ao realizar uma leitura atenta das Vindiciae na edição francesa de 1581, que se encontrava na Biblioteca da Universidade de Leyde, Gerardina Tjaberta Van Ysselsteyn afirmou que ao chegar na terceira parte, o seu “interesse diminuiu”, e ela constatou, “num exame mais minucioso, que o tom da obra havia mudado”. E ao fim da terceira parte ela retomaria “as imagens substanciais do início”, estando “a quarta parte escrita como o começo” da obra. (YSSELSTEYN, 1931, p. 46). Convencida de que há uma dupla autoria nas Vindiciae, ela reúne vários argumentos que vão na direção de uma colaboração ou da dupla autoria:
· a semelhança dos tipos gráficos das edições de 1579 (latim) e de 1581 (francês);
· o argumento da tese de Thieme (1852)[12], na qual as Vindiciae são atribuídas a Mornay e o prefácio a Languet;
· a afirmação de Max Lossen (1887), de que o prefácio deveria ser atribuído a Pierre Loiseleur de Villiers, com uma participação possível de Languet na redação do texto principal;
· a conclusão de Albert Waddington (1893) de que este tratado poderia ser atribuído a um ou mais autores, (mas ele exclui Languet)[13];
· as afirmações de Gooch(1898)[14], de que há dois autores (ele atribui os elementos bíblicos a Mornay);
· os dois títulos da edição latina (título e subtítulo), seriam a junção de dois tratados;
· as (supostas) diferenças de estilo entre as partes I, II e IV e a parte III. (Ela reconhece que há muita semelhança, mas que não se pode estabelecer uma completa simetria);
· a desproporção entre as partes. Ysseslteyn elaborou, após exaustiva análise, uma quadro onde as citações apresentam as seguintes proporções:



· o fato de a terceira parte parecer ser um todo em si mesma (pelo tamanho e pelo tema).
Gerardina Ysselsteyn reconhece que não há documentos (cartas, por exemplo), que comprovam o contato entre Mornay e Languet no período, mas insiste na dupla autoria afirmando que pode ser possível que Mornay e Languet tenham destruído, tão logo tivessem obtido as informações e o conhecimento, correspondências relativas a um escrito perigoso, por segurança pessoal, e cujo anonimato era um motivo de ambos guardarem o segredo por tantos anos. “A meu ver”, conclui Ysselsteyn, “o livro Vindiciae contra Tyrannos, com o título francês De la puissance legitime du Prince sur le peuple et du peuple sur le Prince, não é somente de dois autores, mas foi composto por dois escritores separados, provavelmente publicados ao mesmo tempo e convertido em um só trabalho por uma montagem inteligente e cheia de tato”. Isto explica a diferença de estilo e de conteúdo. Uma única vez Mornay e Languet estiveram em um mesmo lugar no período em que as Vindiciae foram escritas: eles estiveram ao mesmo tempo em Flandres e se encontraram na cidade de Gand nos últimos meses de 1578. ( NICOLLIER, 1995, p. 401).
Assim, as questões I, II e IV seriam notadamente da pena de Mornay. A questão III pertenceria aos dois autores, com clara e perceptível influência de Languet. O prefácio poderia ser de Villiers, como Grotius o afirmara. (HAAG, 1912, p. 113). Ou então Languet poderia ter sido o autor de uma parte do prefácio.
Essa teoria tem então sido bastante aceita, embora nenhum dos argumentos de Gerardina Ysseslteyn seja conclusivo. Para Castro, a “hipótese de Van Ysselsteyn é fascinante, mas (...) discutível”. (1960, p. 79). Vautier mostra-se contrário, mas Pierre Mesnard se mostra favorável. (MESNARD, 1936, p. 337). Para a hipótese de dupla autoria, há também o apoio de Touchard. (1970, p. 50).


Disputa Secular


Madeleine Marabuto (1967) na sua tese de direito Les Theories politiques des Monarchomaques français apresentada na Universidade Sorbonne, sem apresentar uma argumentação aprofundada em favor de seu posicionamento, acredita que a obra é uma produção coletiva, tendo como colaboradores Bèze, Hotman, Gentillet, Goulart, Daneau e Jean de Serres. O interessante é que ela não menciona os dois mais prováveis autores. Mas uma análise do trabalho de Marabuto mostra-nos que sua conclusão é frágil e não tem apoio nem na história política do século XVI e nem na análise do texto. Mas não foi apenas ela que seguiu uma direção oposta às evidências principais. Em 1742, Charles d’Hozier se pronunciou a favor de Hotman – hipótese descartada a priori pelos principais pesquisadores: Hotman era um jurista, não um especialista no texto bíblico. (D’HOZIER, 1742, apud DAUSSY, p. 239). Salvo Mastellone (1969) foi outro – apoiando-se no caráter antimaquiaveliano de algumas partes do tratado afirma que o autor foi Innocent Gentillet. (p. 376).
Mas essas idéias isoladas não constituem a regra desta pesquisa, pois, por carecerem de fundamentos, não foram consideradas pelos que se aprofundaram na questão da autoria. Ralph Giesey (1970), especialista no assunto dos monarcômacos atribui a autoria novamente a Mornay. (p. 41). Graahm Jagger, em 1968, após uma séria análise literária, quando comparou o comprimento das frases, o palavreado e o estilo lingüístico das Vindiciae com duas outras obras de Mornay, a saber, De Veritate Religionis Christianae e Misterium Iniquitatis deu o seu parecer: o estilo de Mornay é destacadamente semelhante ao das Vindiciae. Ele mesmo reconheceu que essa análise não era uma prova irrefutável da autoria, mas se tratava de um indício suplementar a favor de Philippe. (p. 80).
Uma nova edição das Vindiciae em 1979 que teve como coordenador Henri Weber, terá novamente a indicação de Hubert Languet como autor, sendo Mornay o editor. Philippe Desan em 1991 seguirá essa opinião e nesse mesmo ano Robert Kingdom apoiará uma colaboração Languet-Mornay.[15] Em 1994, George Garnett, em seu excelente trabalho de tradução e análise das Vindiciae, mostra-se indeciso, tendendo para uma colaboração entre Mornay e Languet. (GARNETT, 1994, p. 1xxv).


O fim da Pesquisa


Em 1995, Beatrice Nicollier publicou uma extensiva biografia de Hubert Languet e buscou também investigar a participação dele na produção das Vindiciae. Afinal, após todos esses anos de pesquisas, foi ele o único personagem, além de Mornay, que poderia ter sido o autor da obra em questão. Waddington já havia feito um trabalho semelhante no final do século XIX, mas agora Nicollier contava com muito mais elementos de pesquisa à sua disposição. Com seu profundo conhecimento da vida e obra de Languet, a contribuição de Nicollier poderia significar o desfecho de uma busca de mais de quatrocentos anos. E ela trouxe pela primeira vez ao conhecimento público as informações do catálogo do livreiro George Willer.[16]
O catálogo datado da primavera de 1579 mostra que, de fato, as Vindiciae contra Tyrannos eram publicadas desde essa época. Sendo que a atribuição a Languet repousava essencialmente sobre o depoimento de Goulart relatado por Tronchin – este foi severamente desacreditado. O próprio Bayle já admitira essa possibilidade se a data de publicação fosse anterior a setembro de 1581.
Continuando em sua pesquisa, Nicollier mostra que todos os testemunhos favoráveis a Languet provêm de uma mesma fonte: Goulart. Além disso, ela coloca em dúvida uma possível colaboração entre Languet e Mornay, destacando que esses homens praticamente não tiveram oportunidades de se encontrar entre 1572 e 1579. Waddington, analisando os escritos de Languet, já havia excluído a possibilidade de que ele fosse o autor das Vindiciae com base no estilo literário. Como autoridade no estudo do trabalho e vida de Languet, Nicollier termina por afirmar com segurança que ele não foi o autor das Vindiciae contra Tyrannos.
Diante disso, resta-nos agora apenas uma indicação principal: Philippe Du Plessis-Mornay. Seria pretensioso afirmar que ‘sem sombra de dúvida’ chegamos ao autor da mais famosa obra monarcômaca. Mas com o enfraquecimento das indicações que levavam a Hubert Languet, todos os indícios apontam somente para Mornay:

a) o depoimento de sua esposa em um diário particular que ela jamais imaginaria ver publicado. Nesse diário ela menciona várias outras obras de seu esposo e de acordo com os pesquisadores (Waddington e Lossen) – todas as referências aos nomes das obras de forma correta. Além disso, não havia porque Mornay esconder esse fato de sua esposa;
b) não havia motivos para que Mornay se revelasse como autor – excetuando Hotman na Franco-Gallia, todos os outros autores monarcômacos do período ficaram no anonimato ou esconderam-se atrás de pseudônimos. Se não havia motivos para se revelar antes de 1584, pelos grandes riscos, também não havia depois, quando a tese monarquista poderia levar Henri de Navarre a ser o próximo rei francês. Após a morte de Navarre em 1610, os riscos tornam-se maiores para os monarcômacos com o evidente fortalecimento do absolutismo;
c) Mornay era um diplomata, com livre trânsito entre as autoridades da época, representante da França ou do partido huguenote em diversas oportunidades. Não era interessante à sua função ser conhecido como o autor de obra tão infame à monarquia francesa;
d) o testemunho de Grotius, homem de grande erudição e figura expressiva, bem recomendado. O contexto que levou Mornay aos Países-Baixos e a participação de Villiers ganham também credibilidade;
e) o conhecimento e o estilo de Mornay: o abundante uso de expressões bíblicas; o conhecimento que ele possuía do direito e da história dos vários países por onde viajara; sua facilidade para escrever; o uso de panfletos de caráter repetitivo e prolixo (estilo bastante utilizado na questão III e significativamente no restante da obra);
f) embora não conclusivo, o testemunho de Valentin Conrart indica mais na direção de que seja Mornay o autor do que o contrário;
g) os estudos de Graahm Jagger, que, além de apontarem para um único autor, mostram a semelhança de estilo entre outras obras de Mornay e as Vindiciae;
h) Daillé parece seguir o conselho de Mornay de não revelar ser ele o autor e até mesmo dissimular essa hipótese ao insinuar ou apontar em outra direção.

Com relação a um pequeno desencontro das datas apresentadas pela esposa de Mornay com relação a quando as Vindiciae tinham sido produzidas e o que é afirmado na própria obra – haveria aqui um erro? Não vemos assim, pois no começo das Vindiciae é colocada a expressão ‘há cerca de dois anos atrás’. Entre a data de 1º de janeiro de 1577 (citada no início da obra) e o diálogo entre Cono Superantius e Junius Brutus no início de 1575 ou no final de 1574, teremos esse período. O que esses trechos indicam é que Mornay já possuía um esboço de sua obra desde maio de 1574 e o diálogo de Brutus e Superantius fez com que esse trabalho fosse enriquecido, até porque essa obra só seria publicada quase cinco anos mais tarde.
Outro ponto que pode levantar dúvidas é sobre a data de publicação do livro: por que ele não o lançou na data mencionada no começo da obra, ou seja, o começo de 1577? Sendo que a atuação diplomática de Mornay o levou a defender a causa huguenote de diferentes maneiras, é compreensível que ele não tenha publicado seu livro nessa época em função da recente Assembléia dos Estados Gerais de Blois ocorrida no final de 1576. Difundir a teoria de que os Estados Gerais eram depositários da soberania em tal momento significaria “relançar uma guerra contra os huguenotes”. (DAUSSY, 2002, p. 247).
Parece-nos que a idéia pronta, mas escondida a sete chaves, acompanhou Mornay até sua chegada aos Países-Baixos em 1578. Os reformados holandeses estavam sofrendo uma tirania espiritual e política da parte de Filipe II, da Espanha. Haveria uma ocasião melhor do que esta para lançar essa obra revolucionária? É aqui que a narrativa de Grotius sobre a participação de Villiers toma sentido. O capelão de Guillaume d’Orange foi, segundo o famoso filósofo holandês, o autor do prefácio. Uma última revisão em 1578 permitiu o lançamento da obra no início de 1579, a tempo de figurar no catálogo da primavera de Georg Willer.
Resta apenas um ponto que necessita de esclarecimento adicional para que não pairem dúvidas sobre aqueles que pensam ser Philippe Du Plessis-Mornay o autor das Vindiciae. Teria Philippe de Mornay capacidade intelectual e conhecimento para produzir uma obra do nível das Vindiciae?
Hugues Daussy, autor de uma abrangente pesquisa sobre a vida de Mornay, apresenta detalhes interessantes e reveladores desse homem. Estudante dedicado, cedo dominou perfeitamente o latim e o grego e aprofundou-se nos autores antigos. Autodidata, um dos alvos de sua viagem de quatro anos pela Europa foi ter um conhecimento preciso da história dos países que atravessava, sempre tomando notas dos detalhes significativos. Sua estada em Heidelberg em 1568-1569 foi consagrada ao estudo do Direito na Universidade local. O mesmo ele fez em sua breve passagem em Pádua. Finalmente, seu conhecimento aprofundado da Bíblia e dos textos religiosos é bem conhecido dos historiadores do protestantismo, uma das razões de ele ser chamado de ‘papa dos huguenotes’. Não se pode esquecer que Traité de l’Église foi publicada antes das Vindiciae.
O reconhecimento de seu trabalho, sua autoridade e sua reputação caminhavam adiante dele. Em 1580, um ano após a publicação das Vindiciae, o Conselho de Genebra e Théodore de Bèze o receberam como alta autoridade. (GEISENDORF, 1949, p. 323). Além disso, suas idéias políticas não contradizem a filosofia e ideologia das Vindiciae. Por exemplo, em La Remonstrance aux Estats de Blois (p. 70-71) ele faz uma clara distinção entre a revolta legítima e a revolta ilegítima, o mesmo que é feito nas Vindiciae (p. 76-77). Há numerosos exemplos, mas é suficiente saber que não há desacordo entre as idéias de Sthephanus Junius Brutus e Philippe Du Plessis-Mornay.
Particularmente, após a tradução que foi necessária para o desenvolvimento deste trabalho e a análise cuidadosa da obra, excetuando o prefácio, vemos as Vindiciae como um escrito feito por uma única pessoa, pois há uma grande uniformidade de estilo. Sou levado a concordar com Elkan com relação ao prefácio, pois ele não parece estar ligado ao pleno contexto do conjunto da obra. Parece-me muito especificamente ligado a alguns pontos da terceira questão, especialmente às argumentações sobre a resistência à tirania.
Com relação aos autores, havendo me aprofundado na literatura crítica dos principais pesquisadores do assunto, acredito que, de fato, as maiores evidências recaem sobre Mornay como o principal autor, tendo ele um colaborador no prefácio. Se o Cono Superantius citado no prefácio é Villiers ou Languet, não nos parece que os elementos até aqui apresentados sejam suficientes para definir-se decididamente em favor de um deles. Mas parece seguro dizer que Mornay recebeu sugestões e colaboração nas idéias ao longo de seu texto. A idéia do duplo contrato é claramente uma herança de Théodore de Bèze, ao passo que a soberania do povo através das Assembléias é o desenvolvimento do pensamento de François Hotman. Parece claro também que quem prefaciou a obra contribui no conjunto com opiniões em determinados pontos da terceira questão. Pode parecer pretensioso, mas nossa busca nos direciona a uma conclusão: tudo indica que Philippe Du Plessis-Mornay foi o autor principal das Vindiciae contra Tyrannos e, na perspectiva moderna, ele deve ser considerado como o autor da prestigiada obra.

[1] Nas Vindiciae, o povo é mais poderoso do que o rei, mas ninguém o é na sua condição individual.
[2] O teor das Vindiciae a princípio faz realmente lembrar o Du Droit des Magistrats. Na página inicial da edição em latim de 1660 das Vindiciae Contra Tyrannos, consta o seguinte: Sthefano Junio Bruto Celta, sive ut putatur, Theodoro Beza, Autore, Amstelodami, Apud Aegidium Valckenier; MDCLX.
[3] Madame de Mornay também cita com exatidão em seu diário outras obras que seu esposo escreveu. (Memoires de Madame de Mornay, editadas por Mme de Witt, tomo II, livro II, 1868, p. 81). Hauser destaca a fidedignidade do diário como fonte histórica. A primeira edição de Memoires et correspondance de Mornay, foi publicada em 1824 sob a direção de Armand Desiré de La Fontenelle de Vaudoré et Pierre-René Auguis. Nessa obra está reproduzido pela primeira vez o manuscrito da esposa de Mornay. A segunda edição saiu em 1868-1869. (HAUSER, 1912, p. 59).
[4] Valentin Conrart (1605-1675), secretário perpétuo da Academia Francesa, foi também amigo de Philippe Du Plessis-Mornay. (CASTRO, 1960, p. 76).
[5] THIEME, Herman Carl Anton. Disputatio jurídica inauguralis de opúsculo ‘Vindiciae contra Tyrannos’, Groningue, 1852. Ressalte-se que Thieme atribui toda a obra a Mornay, mas o prefácio a Languet. WADDINGTON, Albert. De Huberti Langueti vita (1518-1581), Paris 1888 e “L’auteur des Vindiciae contra Tyrannos”, Revue Historique, tomo 51, janeiro-abril de 1893, p. 65-69. WEILL, Georges. Les Théories sur Le pouvoir Royal em France pendant les guerres de Religion, Paris, 1971. LOSSEN, Max. Ueber die Vindiciae contra Tyrannos. Heildelberg, 1898. MOUSSIEGT, Paul. Théories Politiques des Reformes au XVIéme Siècle. Genebra: Slatkine Reprints, 1970. ELKAN, Albert. Die Publizistik der Bartholomäusnacht um Mornays “Vindiciae contra Tyrannos”, Heildelberg, 1905. FIGGIS, J.N., El Derecho Divino de los Reyes y tres ensaios adicionales. Trad. espanhola por E.O. Gormam, Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1942. FRANKLIN, JULIAN H. Constitutionalism and resistance in the sixteenth century: the protestant monarchomachs, in Political Theory and social change. Ed. David Spitz, New York, 1969. Entre outros defensores da autoria a Du Plessis-Mornay, podemos mencionar Harold Laski, Historical Introduction (p. 57-60); J. Lecler, (1955, p. 90) e Henri Hauser. A posição de Henri Hauser é interessante. Em Les Sources (p. 265), aceita a atribuição a Du Plessis-Mornay, negando categoricamente a hipótese Languet (p. 158). Já em La Preponderance Espagnole (p. 96), não apenas admite esta última hipótese, como também a dupla autoria. Parece haver aí uma influência dos trabalhos de Barker (1930) e G. T. Von Isseslsteyn (1931) sobre o assunto, modificando o seu parecer anterior.
[6] A primeira edição do Dictionnaire Historique et Critique é de 1697. A última reedição dessa versão original, pela Presses Universitaires de France (PUF), é de 1995.
[7] “Henricus tertius rex francorum, curiosus omnia none quae toto regno dicebantur, ut ea ratione cogitationibus et consiliis omnium interesset: cum legisset librum qui Stephani Junii Bruti nomine vindicias habet contratyrannos et quis sub eo nomine lateret author avidissime cuperet scire: post delusas omnes explorationes non putavit compendiofiore via pervenire posse ad ejus rei quam inquirebat notitiam, quae indicio nostri Goulartii quem nihil latere credebat eorum quae typis evulgabantur. Ad Goularttium mittit qui abe o rem edoceretur. Autographum authoris viderat noster et sciebat opus esse Huberti Langueti viri a singulari pietate, doctrina, prudentia celeberrimi, quod vir illustris et literatae nobilitatis decus Philippus Mornaeus Thomae Guarino typographo tradidit excudendum et publico dedit, cum post auctoris obitum in suam potestatem venisset. Quod tamen distulit indicare noster, ne sanctissimi viri manes immerito sollicitarentur.” (Theodori Tronchini Oratio Funebris venerandi senis Simonis Goulartii Sylvanectini in Ecclesia Genèvensi Pastoris fidelissimi, Genebra, Pierre Aubert, 1628, p. 7-8).
[8] As conclusões finais de Vautier são as seguintes: o autor é Hubert Languet, que remeteu seu manuscrito para Mornay, este escreveu o prefácio da edição latina, ou traduziu a obra, ou mesmo fez ambas. É possível que tenha também se encarregado de editar as Vindiciae Contra Tyrannos, o que corresponde às indicações do prefácio.
[9] COLOMIES, Paul. Opuscula, Paris, 1668, p. 131, apud DAUSSY, op. Cit., p. 238.
[10] Observe que já fazia quase noventa anos desde a polêmica que começou a partir das afirmações de D’Aubigné. (DAUSSY, 2002, p. 238).
[11] Como o prefácio é datado de janeiro de 1577, as supostas discussões entre Cono Superantius e Brutus devem ter ocorrido no final de 1574 ou no início de 1575. Isso colocaria as Vindiciae no mesmo contexto que Du droit des magistrats e Le Reveille-Matin de Bèze, e a primeira edição de Hotman da Franco-Gallia, em 1573.
[12] Disputatio juridica inauguralis de opusculo “Vindiciae contra Tyrannos”.
[13] Revue Historique, 1893, p. 65, 66.
[14] Estas conclusões estão no The History of English Democratic Ideas in the 17th Century.
[15] O artigo de Philippe Desan terá como título La conscience et sés droits: les Vindiciae contra Tyrannos de Du Plessis-Mornay et Hubert Languet e foi apresentado em um colóquio sobre a liberdade de consciência em Genebra, em 1991. O ponto de vista de Robert Kingdom aparecerá na obra de Burns (1991) The Cambridge History of Political Thought, p. 240. A obra tem a coordenação de James Henderson Burns e é de Kingdom o capítulo sobre a Teoria da Resistência. [16] O trabalho de Nicollier tem como título Hubert Languet (1518-1581) – Um reseau politique international de Mélanchtthon a Guillaume d’Orange. O catálogo de Georg Willers: Die Messkataloge Georg Willers, Faksimiledrucke hg. Von Bernhard Fabian, Hildesheim & New York: Georg Olms Verlag, 1972 – 1980.

Frank Viana Carvalho, doutor em Filosofia (FFLCH - USP, Université François Rabelais - França), mestre em Educação (UNASP), mestre em Filosofia (USP), professor de Ética e Filosofia na Hoyler - VGP.

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