segunda-feira, 7 de julho de 2008

O contratualismo no Du Droit des Magistrats - 2007

O Contrato em Théodore de Bèze como instrumento contra a Tirania
Frank Viana Carvalho

A singularidade da teoria de resistência de Bèze não está nos elementos separados que ela incorpora, nem na ênfase que ele deu a cada um, mas no modo como ele os combinou e a aplicabilidade particular de sua teoria no tempo em que ele a escreveu. Além disso, a finalidade secular e espiritual do Estado, os magistrados como representantes do povo, a vocação e chamado para funções especiais e a resistência à tirania, são propostas que não representavam novidades. O mérito de Bèze está justamente na justaposição desses elementos e, a estes, ele ainda incorporou outro igualmente importante: o contrato.

Hotman havia narrado uma história constitucional francesa para dali extrair elementos que estabelecessem uma limitação do poder real. O autor de Du Droit des Magistrats preferiu outro caminho. Tendo já apresentado os magistrados como representantes vocacionados e chamados por Deus para defender os interesses do povo, cabia agora mostrar o que os obrigava ao cumprimento do dever. E ele escolheu a analogia do contrato, pois percebeu que ela estava presente direta e indiretamente ao longo da história nas relações entre povo e magistrados.
Bèze procurou demonstrar historicamente que existiam instâncias de relações condicionais entre reis e o povo.[1] Entretanto, um oponente poderia demonstrar um número igual de exemplos históricos nos quais é aparente que nenhuma condição expressa está ligada à relação entre governante e governado. Além do mais, poderia ser apresentado o argumento de que, mesmo que sejam incluídas condições, somente Deus poderia corrigir o mal, caso as regras fossem violadas pelo governante. Ele se antecipa a essas objeções invocando a lei natural. Afirma que é evidente que nenhuma nação se submeteria sem condições expressas ou tácitas de ser governada de acordo com a justiça e a igualdade.

(...) que não houve jamais uma nação, que conscientemente e sem crença ou força, se entregou até ao ponto de se colocar debaixo da vontade de alguns soberanos, sem esta condição precisa, ou tacitamente entendida: de ser justa e eqüitativamente governada. (Du Droit des Magistrats, p. 45).

Uma submissão equivocada demonstra-se contrária à lei natural e, mesmo quando consentida voluntariamente, seria tão contrária à justiça natural que não teria nenhum valor e seria nula em sua legalidade. Bèze tenta prevenir outras críticas dizendo que essa proposição é tão clara e óbvia à razão natural que somente aqueles “de todo privados de bons sentidos” não concordariam com isso. (idem, p. 46). Para ele, contratos entre o povo e os governantes podem ser evitados, mas de forma alguma isso é um retorno ao estado de natureza. O que Bèze tenta provar é que há sempre condições ligadas ao contrato entre governante e súditos, e assim o governante está sempre limitado por certas condições; e mais, se o governante, como um tirano viola essas condições, alguém além de Deus, tem o direito de fazer algo a respeito.

Os magistrados inferiores, em função de haverem por juramento prometido sustentar as leis fundamentais, têm por sua obrigação contratual o dever de assegurar a conformidade do rei com as condições do contrato.[2] E havia ainda o aspecto da vocação que tornava essa ação contra a tirania uma obrigação inviolável. No dizer de Bèze: “deve ser anulado todo poder que se afasta da eqüidade e da honestidade”. (idem, p. 14).

Em todo contrato há a possibilidade de anulação ou quebra se uma das partes violou o seu compromisso pactuado. Ou seja, aqueles que fizeram o contrato podem quebrá-lo se houver uma boa razão. (idem, p. 45). A conclusão é que aqueles que têm o poder de criar um rei, isto é, os que fazem o contrato, também têm o poder de depô-lo, isto é, quebrar o contrato. Se uma das partes violou as regras, há razão para a quebra do contrato. No relacionamento entre o povo e o rei, isso tende a acontecer com o rei, pois é ele que assumiu o compromisso de governar e cuidar do bem-estar de todos.

Dois contratos são apresentados por Bèze e estão envolvidos na estrutura política desejada. O primeiro é uma aliança feita conjuntamente pelo rei e pelo povo a Deus, no qual eles juram observar as leis de Deus, eclesiásticas e políticas.[3] O segundo é uma aliança entre o rei e o povo, segundo o qual o rei jura manter certas condições e então é aceito pelo povo. (idem, p. 25).
Ele os chama de ‘votos’ ou ‘juramentos’ e seguindo através desses ‘compromissos’ registrados, primeiro na história dos israelitas, depois em outros povos, Bèze fala dos magistrados da França, onde os soberanos juram fidelidade à soberania. Os magistrados inferiores também são estabelecidos através de juramento. É em termos desse voto jurado pelo rei à soberania, que ele pode e deve remover magistrados que não cumprem com o seu dever. Respeitando seu voto à soberania, os magistrados têm a responsabilidade de assegurarem que o soberano mantenha seu voto da mesma forma. (idem, p. 20).

O voto do rei o obriga a manter as condições que aceitou para governar – foi isso que ampliou sua autoridade. Os magistrados, do mesmo modo juram manter as leis fundamentais para ampliarem sua autoridade. Bèze conclui que isso implica que tanto o rei quanto os magistrados guardam uma porção da autoridade do Estado. A obrigação mútua entre o rei e o magistrado faz com que o magistrado sirva como ‘garante’ do cumprimento do contrato entre o rei e o povo. No caso do contrato entre Deus, o povo e o rei conjuntamente ser quebrado, isto é, se o rei passasse a comandar contra a vontade de Deus, o povo ainda é obrigado a cumprir sua parte do contrato com Deus e deve continuar a fazer a vontade de Deus mesmo que isso signifique desobedecer ao rei. Esperançosamente, as preces do povo serão atendidas e o próprio Deus punirá o governante que quebrou o contrato com Deus.

Por outro lado, se o segundo contrato é quebrado, isto é, o contrato entre o rei e o povo pelo qual os magistrados agem como ‘garantes’, esse é um ato da esfera política e deve ser corrigido por aqueles cujo trabalho é corrigir tais ações na esfera política.

Não foi fácil para Bèze argumentar a partir do direito positivo sobre como a instância das leis de contratos privados (onde há vários exemplos) se aplica presumivelmente a condições expressas de contratos de governo. Como diz Finlayson (1965), “quanto mais ele inovava na teoria política, mais trabalhosos seus exemplos e razões se tornavam”. (p. 60). Ele apelará para a lei natural e para o princípio da igualdade, citando o exemplo de outros países. Em síntese, as condições ou são expressas ou estão implícitas nesta relação entre súditos e soberano. O rei vem do povo e de seus magistrados e não o contrário:

Eu digo então que os povos não são oriundos dos magistrados (...) aqueles que se deixam governar, ou por um príncipe, ou por alguns senhores escolhidos (...) são mais antigos que seus magistrados. (Du Droit des Magistrats, p. 45).

Alguns princípios se sobressaem nessa análise contratual de Bèze: primeiro, um magistrado que viola a ordem e se torna um tirano, quebra o contrato e está sujeito ao julgamento do povo; segundo, os magistrados (superior e inferiores) são oriundos do povo e a este representam; e terceiro, os representantes do povo (magistrados inferiores) são garantes do contrato e por isso podem resolver os conflitos oriundos do não cumprimento do contrato. Com base nesses três princípios deduz-se que os direitos de um magistrado soberano não são jamais categóricos, mas relativos e condicionais. Por outro lado, os direitos do povo são inalienáveis e não prescrevem.

[1] Entre as páginas 24 a 44 do Du Droit des Magistrats há exemplos históricos de relações contratuais e condicionais entre o povo e o rei.
[2] “E quanto aos magistrados inferiores, seu dever é guardar as boas leis, às quais eles juraram observar ao encontro de todos, conforme a parte do dever no estado público que lhe é entregue.” (Du Droit des Magistrats, p. 11).
[3] “Pois havia um juramento solene, pelo qual o rei e o povo obrigaram-se a Deus, a saber, à observação das leis, tanto dos deveres eclesiásticos, quanto políticos.” (Du Droit des Magistrats, p. 31-32).

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