quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Do Útil e Do Honesto – Uma Análise do Pensamento de Michel de Montaigne - Parte II

Dr. Frank Viana Carvalho
Resumo


A fraqueza e o zelo se confundem nas declarações de Montaigne, procurando evidenciar um pouco da natureza humana ao revelar-se a si mesmo através deste fabuloso ensaio. Ponteado de colocações ciceronianas, ora maquiavelianas, ele inicia uma discussão que tem como pano de fundo a sua própria experiência na vida pública, que consistia, mais das vezes, em viver uma não verdade diante de todos, do que a autenticidade que ele tanto buscava.


(continuação)


“... senti desgosto vendo juízes induzirem, por fraude e falsas esperanças de favor ou de perdão, o criminoso ...”

Para Montaigne, este tipo de comportamento, só é útil à justiça. É ”uma justiça maldosa” , mas não apropriada a ele. Embora ele ache que alguns males são necessários ao funcionamento do edifício humano, ele busca se caracterizar particularmente – “e não apenas odeio enganar, mas odeio que se enganem sobre mim.”

“... eu me apresento com minhas opiniões mais vivas, e de minha forma mais própria.”

Falando de suas negociações com os príncipes, ele afirma que se apresenta como de fato é, com ingenuidade e liberdade . Este seu proceder o livraria de suspeitas e com isso, seu crédito, já nos primeiros contatos, seria obtido. O contrário se passaria com seus interlocutores, que se mantinham encobertos, apresentando-se e fazendo-se o mais moderados e mesmo ‘dissimulados’, tanto quanto possível.

Na sua colocação – “não pretendo outro fruto ao agir do que o agir, e não vinculo a ele longas cadeias de intenções. Cada ação faz particularmente seu jogo: acerte, se puder” – vemos sua naturalidade de buscar em cada ato um resultado para aquele único momento. A trama de ações e de intenções não fazia parte do seu proceder. Parecia agir e pensar no momento ou tendo apenas uma coisa em vista e não um desencadeamento de ações e conseqüências.

Porém, parecia justificar-se para revelar seu verdadeiro sentimento para com os príncipes. Seu sentimento por eles não era nem mais nem menos do o que deveria sentir. Não havia interesses por detrás. Como estava seguro do que dizia e não tinha comprometimentos que o pudessem prejudicar, poderia falar e se sentir seguro – “todas as intenções legítimas e eqüitativas são por si mesmas equânimes e temperadas, caso contrário alteram-se em sediciosas e ilegítimas. É isto que me faz andar por toda parte com a cabeça erguida, com o rosto e o coração abertos.”

“... Em verdade, e não temo confessar, levaria facilmente, se fosse preciso, uma vela para São Miguel e outra para seu dragão...”

A contradição humana é levada ao extremo por Montaigne. É como se dissesse: permitam-me ser eu mesmo o tempo todo; e se sou contraditório, que eu seja assim também. Ora, aqui ele se revela pela utilidade – e se ela o levar à ruína, ou se ele sair perdendo com isso, que assim seja. Não está a história repleta de exemplos semelhantes?

Contudo, ele vê que esta posição é mais fácil para homens privados. Como poderia o político esperar a definição para depois tomar a decisão? Parece de fato muito mais difícil. Com propriedade, ele cita Tito Lívio para justificar o seu comentário:

“... Ea non media, sed nulla via est, velut eucentum expectantium quo fortunae consilia sua applicent.”

Para Montaigne, seria uma espécie de traição ter este procedimento na vida privada. É necessário nestes casos tomar partido. Vejamos, aqui ele se mostra pela honestidade, ou seja, não seria honesto não tomar partido. Parece estóico, pois vemos aproximar-se de Cícero, “o honesto que conseguimos entender deve ser tão protegido e conservado por nós, quanto aquilo que própria e verdadeiramente se diz honesto, deve ser conservado pelos sábios.” (Cícero, III, 350)

Daí, ele volta ao público e diz que isto convém a eles, embora faça questão de frisar que esta justificativa não serve para ele. Ficar em cima do muro, usual para nós hoje, parece que é exatamente isto que não pode acontecer com a classe política, a não ser em caso de política estrangeira. Porem, a prontidão na resposta pode levar a “querelas desproporcionais”. Este procedimento apenas revela o lado humano no comportamento de quem detém o poder: “não é a causa que os acalora, é se [o próprio] interesse: atiçam a guerra não porque é justa, mas porque é guerra.”

E para os que são da vida privada, nada os impede de poderem se portar, tanto diante de um como do outro, com lealdade e comodamente. É como “deslizar por águas turvas sem nelas querer pescar.”

Um comportamento diferente deste seria arriscado. Pois aqueles que levam e trazem, oferecendo-se ao serviço de um, em detrimento e traição de outro são tidos por maus também da parte daquele que recebe o favor. Quem se beneficia deste procedimento (dos homens dúplices) são os que recebem a informação – guardam-se para que aquele leve o menos possível.

Já para Montaigne, ele não vê motivação ou utilidade que o possa levar a mentir a um ou a outro. “Sempre soube mais da parte deles do que quis. Um falar aberto abre outro falar e o traz para fora, como fazem vinho e amor.”

E para justificar o seu comportamento diante dos príncipes, ele cita Filípides, na sua resposta ao rei Lisímaco, que lhe perguntava:

“... Que queres que te comunique de meus bens? O que quiseres, contanto que não sejam teus segredos.”

Mas ainda assim, buscando a honestidade no proceder, conforme vimos claramente nesta situação, Montaigne confessa que se deve “servir de instrumento de engodo, que ao menos esteja preservada a (sua) consciência.”

Mas ele sabe e comenta daqueles que não aceitam este tipo de serviço. Ou seja, um serviço limitado, preso as necessidades de apaziguar uma consciência. Pessoalmente Montaigne não vê remédio. Em meio a esta turbulência de contradições não seria possível trair uma única coisa: a sua consciência – “escravo não devo ser, senão da razão”; e completa para que nós, seus leitores possamos coadunar com suas colocações iniciais “e nem isso consigo muito bem.” É interessante perceber, que as aparentes contradições sempre encontram um proceder lógico, seja no âmbito da consciência, seja no campo das ações:

“... as vontades e os desejos fazem suas próprias leis; as ações têm que as receber da ordenação pública.”

Para Montaigne, existiam caminhos “menos contraditórios” ao seu gosto e “mais conformes” à sua capacidade. Tudo isso para justificar que não eram do seu feitio as ocupações públicas, das quais ele acha que se retirou em boa hora. Para ele, não dá para participar deste “negociar”, sem dissimulação e mentira. Sua revelação é surpreendente: “nelas [as ocupações públicas] me mergulharam até as orelhas, e com sucesso.”

(continua)

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